O não de muitos e o sim de uns poucos estão marcados no corpo do homem agora à frente de um negócio arriscado, o de livraria, café e restaurante
(Junio Matos/ A Crítica)
A chuva chegou forte, daquela de pingos graúdos. A água do céu, junto ao vento, fez os galhos das árvores resilientes do Largo Sebastião dançarem em movimentos rápidos, bonitos. Um cenário para quem ousou escapar o olhar e acompanhar as acontecências de lá de fora. A luz elétrica se foi e deixou alguns humanos atônitos.
Chuva, falta de luz, movimento de cadeiras e de gente... Nada disso impediu de outra luz tomar conta do prédio, renovado, agora com o nome de Valer Teatro, aberto a convidados no final da manhã de sexta-feira (6). Era a corrente da alegria, do agradecimento, do reencontro, em plena operação, sem que uma palavra de comando tenha sido dada. Apenas movimento, apenas empatia. Uma outra luz tinha sido acesa. As gentes de cabelos brancos, pintados, pretos, coloridos de muitos tons. Uns sentados, outros em pé, apertadinhos no térreo do Roseiral – espaço onde já funciona um novo café – como brinde de acesso à livraria.
O dono do empreendimento, o jornalista pernambucano Isaac Maciel, saudou os presentes contando, na penumbra e sob emoção incontida, retalhos da vida do menino que sonhava ter uma bicicleta e, conseguiu, com o dinheiro recebido no primeiro emprego do qual pediu demissão por incompatibilidade de função. Comprou uma Monark. Cheio de fatia de poder desfilou com a bike.
A história de Isaac Maciel é uma grande reportagem ou livro de muitas páginas. Um brasileiro nordestino que vislumbrou na oferta de um grande salário, numa empresa, em Manaus e, ao chegar à cidade, com a família, de mala e cuia, descobriu e experimentou outro roteiro. O não de muitos e o sim de uns poucos estão marcados no corpo do homem agora à frente de um negócio arriscado, o de livraria, café e restaurante.
Os riscos, Isaac Maciel os conhece bem. Se ouvisse conselho, não teria construído a Valer Teatro e iria viver a vida com possível tranquilidade. O filho mais novo, Isaac, estudioso das finanças, alertou o pai a seguir um bom caminho. Ou seja, tentou movê-lo a viver longe das encrencas e sem o risco de endividar-se.
Teimoso, Isaac Maciel inventou de lembrar em defesa da teimosia de um trecho do livro da escritora cearense Socorro Acioli, “A Cabeça do Santo”, quando numa passagem, em um dos diálogos, na página 155, escreve: “Foi a morte que me ensinou. O tempo de sonhar é em cima da terra.”
Então, o menino que sonhou tanto em ter uma bicicleta e sabe o que significa levar pernadas, voltou sem eira nem beira a Recife e, logo, em seguida, retornava a Manaus para vender livros. Isaac quis sonhar em cima da terra quente desta cidade.
A bela e instigante região do Largo São Sebastião, no centro de Manaus, tem agora mais um cantinho, grande, para receber os daqui e os de fora. Os e as amantes dos livros, os e as amantes das iguarias do café da manhã amazonense com toque de outras cozinhas, os e as amantes de vinho, da cerveja ou de quem quer somente uma cadeira no Roseiral para ler, contemplar a paisagem, ficar de olhos fechados, em conversas íntimas.
As vozes da cabeça do santo continuam a ecoar e a promover andanças teimosas, sonhadoras e construir paradinhas misturadas de culturas diante do processo de tentativa de banir a diversidade. Um brinde à teimosia pelos livros, às leituras, aos autores, às autoras; ao menino da bicicleta que virou livreiro.