ação social

Fetos abandonados em maternidade pública de Manaus são sepultados

Ação inédita foi realizada com base na tese ‘Custos Vulnerabilis’, que prevê a atuação da Defensoria Pública em casos de vulnerabilidade social

acritica.com
26/12/2024 às 17:21.
Atualizado em 26/12/2024 às 19:23

(Foto: Márcio Silva/DPE-AM)

A Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) viabilizou o sepultamento de 17 fetos abandonados na Maternidade Ana Braga, localizada na Zona Leste de Manaus. A ação inédita destaca a atuação da DPE-AM em casos de extrema vulnerabilidade social, com base na tese Custos Vulnerabilis, que assegura o direito de atuação da Defensoria Pública em situações que envolvam a fragilidade de pessoas ou grupos em situações de risco ou abandono.  

O sepultamento ocorreu no cemitério Nossa Senhora Aparecida, localizado no bairro Tarumã, Zona Oeste da capital. O ato contou com o auxílio da Prefeitura de Manaus por meio da equipe SOS Funeral, que realizou a logística do enterro.  

Os fetos, que nasceram mortos ou faleceram logo após o nascimento, foram abandonados por suas mães — mulheres em situação de vulnerabilidade social — e estavam armazenados há pelo menos três anos no local, sem qualquer perspectiva de um enterro digno, já que a maternidade tentou contato com os responsáveis, sem sucesso.  

A ação, que envolveu a judicialização para a autorização de sepultamento e o registro tardio de óbito, chegou à Defensoria por meio do Comitê de Enfrentamento à Violência Obstétrica no Amazonas. Em seguida, o caso foi assumido pela Defensoria Especializada no Atendimento de Registros Públicos, que tem como titular a defensora pública Rosimeire Barbosa, responsável por conduzir todo o processo.  

“Após termos conhecimento da situação, verificamos como a Defensoria do Amazonas poderia atuar para garantir a estas crianças um enterro digno. Durante esse processo, constatamos que as mães estavam em extrema vulnerabilidade, sendo, em sua maioria, pessoas em situação de rua e dependentes químicas. Por isso, decidimos ajuizar essa demanda para obter a autorização de sepultamento combinada com o registro tardio de óbito”, explicou a defensora.  

Quando um bebê morre recém-nascido ou nasce morto, a maternidade deve seguir alguns passos. Primeiro, é necessário obter a declaração de óbito feita pelo médico e levá-la ao cartório para a emissão tanto da certidão de nascimento quanto da de óbito.  

Após isso, o SOS Funeral é acionado para dar continuidade ao processo. Se o feto pesa menos de 500 gramas, ele é descartado; no entanto, quando o peso é superior, uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) estabelece que o corpo não pode ser descartado e que o sepultamento, assim como a emissão do registro de óbito, é obrigatório.  

Esse era o caso dos corpos abandonados. Dessa forma, com base na lei, a Defensoria do Amazonas obteve resposta positiva do juízo e foi autorizada a realizar o enterro. Contudo, surgiram dois fatores complicadores: a falta de espaço para o sepultamento e a intervenção de um terceiro interessado, que se apresentou para cremar os corpos das crianças.  

De acordo com a legislação brasileira, a cremação só pode ser realizada com autorização da família ou em situações de saúde pública. Como não havia autorização das famílias, não seria possível a cremação. A Defensoria, então, procurou auxilio da Procuradoria Geral do Município (PGM), para garantir um sepultamento digno no cemitério, assegurando que as crianças fossem enterradas de forma adequada.

Após obter a autorização judicial, a Defensoria Pública acionou o SOS Funeral, um serviço da Prefeitura de Manaus criado para atender pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica que não têm condições de arcar com os custos dos serviços funerários em casos de óbitos.  

O gestor do SOS Funeral, João Cláudio Nobre, acompanhou todo o processo de enterro dos 17 fetos e auxiliou na reserva do espaço para o sepultamento. “Estamos aqui não só pelo dever, mas também por entender o papel da Defensoria neste ato, que é acolher pessoas em situação de vulnerabilidade, assim como é o papel do nosso serviço: dar atenção e suporte àquelas que não podem arcar com esses custos”, explicou João Cláudio.  

“Em hipótese alguma recusaríamos uma solicitação como esta, não só pela obrigação, mas pela questão social. São crianças que infelizmente nasceram em vulnerabilidade nessas maternidades e estavam armazenadas há anos. Nossa função foi viabilizar este ato, dando todo o suporte necessário para a conclusão digna desse processo”, finalizou.  

Atuação em prol dos invisíveis  

A Defensoria, atuando nos registros públicos, pôde, na ausência das mães ou familiares, garantir os direitos dessas crianças mesmo após a morte.  

“Quando me deparei com este caso, não pude fechar os olhos. Percebi a importância de trabalhar para que estas crianças pudessem ter um funeral digno. A Defensoria não pode se furtar de situações como esta. Nosso papel é buscar soluções para demandas da vida real, defender os mais vulneráveis, trazer visibilidade a quem está fora dos centros de poder e garantir que seus direitos, mesmo os mais básicos, sejam respeitados”, expressou a defensora pública.  

Com a conclusão do sepultamento, a Defensoria Pública do Amazonas possibilitou um desfecho legal para o caso. Com o sentimento de dever cumprido, a defensora Rosimeire Barbosa destacou que, ao pensar em ser defensora pública, jamais imaginou representar um caso como este.  

“Quando estudamos para o concurso da Defensoria, não podemos prever casos como este. Porém, além de promover justiça, assumi também a responsabilidade de trazer paz às famílias invisíveis dessas crianças, que agora poderão descansar dignamente. Reafirmei o compromisso com a população mais vulnerável, dando voz a quem não pôde ser ouvido”, concluiu.  

Recomendação

A Defensoria Pública trabalha agora para apresentar uma recomendação à Secretaria de Estado da Saúde (SES-AM), visando estabelecer um protocolo claro e eficaz para o sepultamento e registro de óbitos de pessoas que permanecem nas unidades hospitalares sem identificação ou responsáveis.  

O procedimento, já previsto em lei, busca garantir que essas mortes sejam registradas dentro do prazo legal, evitando sobrecarga nos necrotérios e possíveis demandas judiciais.  

Além de reforçar o cumprimento das normas, a medida pretende assegurar que os responsáveis pelas unidades hospitalares tenham pleno conhecimento e aplicação dessas diretrizes, evitando casos de negligência e garantindo a dignidade dos falecidos.  

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